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Flavia Azevedo
Publicado em 22 de maio de 2025 às 11:59
Você viu? Bem na dela, curtindo uns dias em Trancoso, a irmã do jogador Cristiano Ronaldo, Kátia Aveiro, foi abordada por um garoto vendendo lembrancinhas na praia. O garoto vestia uma camisa com o nome do jogador. Kátia comprou lembrancinhas, filmou o menino e publicou as imagens acompanhadas do seguinte texto: “olha só essa agradável surpresa, longe dele imaginar que estava a falar com a irmã dele”. Bastou para "a internet" observar, julgar, concluir e entupir as caixas de mensagens da criatura cobrando e afirmando que ela poderia ter intermediado um contato com o craque português ou comprado uma bicicleta para o menino. Vejam que beleza! Mas o que ela fez diante disso?>
Ao ver a repercussão, Kátia não pediu desculpas nem disse que foi um "mal-entendido". Também não prometeu ajudar toda a família do garoto nem pagar para sempre os estudos do menino. Pelo contrário. Ontem (21) ela publicou outro vídeo dizendo o que todo mundo precisa ouvir. Em primeiro lugar, que "o fanatismo é uma coisa cansativa". Boa, Kátia! E eu agradeço a Mainha por, desde sempre, me ensinar isso. Fui educada para JAMAIS ar vergonha atrás de qualquer tipo de "celebridade", nem autógrafo eu nunca pedi. "Vamos pra show, mas se começar histeria volta pra casa", escutei algumas vezes. "A criatura nem sabe que você existe, deixe de maluquice", me dizia a mesma Mainha ao me ver "encantada" por estranhos famosíssimos. Mal sabia ela que me educava para não sucumbir a estes tempo em que que existem mais "guias", em diversas áreas, do que gente. Obrigada, Mainha.>
No mesmo vídeo, Kátia também disse, nas palavras dela, que "não se faz caridade com o chapéu alheio". Essa foi outra coisa que aprendi. Pra quem não teve o privilégio de ouvir essa frase (com os devidos exemplos práticos) na infância, explico: cada pessoa cobra de si, faz "caridade" (não gosto dessa palavra, mas vá) com os próprios recursos e deixa os outros em paz. Em relação ao menino vendendo na praia, por exemplo, o que todos nós podemos fazer é cobrar DO PODER PÚBLICO que crianças e adolescentes tenham condições suficientes para não precisar trabalhar. Porque é OBRIGAÇÃO do poder público cuidar disso, mas pouca gente lembra dos meninos vendendo na praia na hora de votar, por exemplo. Não é mesmo?>
Também podemos direcionar nossa audiência, nossos elogios, nossa divulgação para indivíduos e empresas que têm compromisso social. Podemos ficar atentos a isso. Em nossa vida pessoal, podemos ajudar no que for possível. Cada qual com a própria consciência, com os próprios recursos emocionais e financeiros. Porém, coagir outras pessoas, tentando monitorar a solidariedade alheia é um hábito comum de gente que adora julgar e dar ordens, mas não coça o próprio bolsinho. Também de algumas empresas. Lembro do resort caríssimo em que fiquei hospedada uma vez, há muitos anos, no Sul da Bahia - e que ainda cobrava os olhos da cara por cada atividade extra -, mas embutiu na conta uma taxa para "doação" às comunidades circunvizinhas. >
Não paguei e fiz discurso "escandalizando" os funcionários com a obviedade de que a obrigação moral de amparar aquelas comunidades é do empreendimento milionário e não minha. Que doassem um percentual das diárias, dos eios de cavalo. Que oferecessem um espaço para a venda do artesanato produzido na região, que treinassem e empregassem pessoas dessas comunidades. Também que não cobrassem dos funcionários a postura de humildade escravocrata que presenciei naquele lugar "para ricos". Perguntei cadê a creche pros filhos das funcionárias, lembrei que eles tinham mil opções para ajudar de forma contínua e consistente, sem aquela cena ridícula de cobrar do hóspede a "taxa culpa cristã", como chamei naquele dia. Sem a qual talvez eu nem comentasse nada, mas fui convocada à discussão pelo perfeito exemplo de "fazer caridade com chapéu alheio".>
"Aos fiscaizinhos de internet, vocês têm ideia de quantas pessoas me abordaram naquele dia na praia?", ainda disse Kátia Aveiro. Eu tenho e não há vivente sobre a Terra que consiga performar o comportamento ideal - de escuta, acolhimento e ajuda financeira - a cada abordagem, todos os dias, em todos os lugares de circulação coletiva. Afirmar algo diferente disso é cinismo e você sabe disso. Por esse motivo, precisamos de justiça social e não de caridade. Por isso precisamos de equidade e não privilégios. Mas aí, como funcionaria uma sociedade que acabou por se estruturar - de ponta a ponta - em cima da miséria? O que faremos sem os que precisam das migalhas que "doamos" e, assim, nos sentimos mais limpos? De que viveriam os "bonzinhos" da internet? Como seria se não houvesse tanta gente a ser socorrida e, portanto, milhares de oportunidades para parecer "bacaninha"? Se ninguém toe "tudo por dinheiro", como seria? Crianças vendendo na praia fazem parte de uma perversa necessidade coletiva e, por isso, continuam ali. O buraco é mais embaixo. Então, faz o teu, bença. E, se não for pedir muito, pensa mais direitinho.>