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Conheça o porteiro de condomínio de luxo que lê 50 livros por ano

Abraão Menezes dos Santos praticamente não sabia ler até os 13 anos e só terminou o Ensino Médio aos 21. Hoje, porteiro de um condomínio de luxo, lê até 50 livros num ano

  • Foto do(a) author(a) Roberto  Midlej
  • Roberto Midlej

Publicado em 31 de maio de 2025 às 06:00

Abraão, em sua biblioteca, na casa onde mora em Pojuca
Abraão, em sua biblioteca, na casa onde mora em Pojuca Crédito: Sora Maia

Quais são seus planos para 2031? Alguns dirão que querem estar milionários; outros, que querem dar uma volta ao mundo e há ainda aqueles que desejam estar aposentados. Mas o desejo de Abraão Menezes dos Santos, 42 anos, é bem mais ível e, para muitos, bem menos ambicioso: ele quer parar tudo daqui a seis anos para reler um livro que marcou a sua vida: Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis (1839-1908).

“Em 2031, este livro vai completar 150 anos e me marcou muito a questão do racismo nele. Também, no fim, a fala de Machado de Assis: ‘Não tive filhos. Não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria’. E tem ainda a questão de Prudêncio, o antigo escravo de Brás. Depois de um tempo, Brás encontra o mesmo Prudêncio batendo em outro escravo. Muita coisa no livro me marca, como a questão do autor-defunto e o defunto-autor”, diz Abraão, que é porteiro de um condomínio de luxo na Praia do Forte.

Ávido leitor, ele garante que já leu nove livros nestes primeiros meses de 2025, dos mais diversos estilos e autores. Talvez você esteja pensando que nove livros em cinco meses não são muita coisa. Mas é muito, sim! No final do ano ado, a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil mostrava que 53% dos brasileiros não haviam lido sequer um trecho de alguma obra nos três meses anteriores ao levantamento. Apenas 27% havia lido um livro integralmente naquele mesmo período. Nesses mesmos três meses, Abraão deve ter lido sete ou oito publicações.

Abraão com a esposa Daisy
Abraão com a esposa Daisy Crédito: Sora Maia

E se você ainda não está convencido de que a história dele merece uma reportagem, toma esta: até os 13 anos, Abraão era um analfabeto funcional, que praticamente só escrevia o próprio nome. Somente aos 21, quando alguns já estão concluindo a faculdade, ele se formou no ensino médio. Mas, mesmo com essas dificuldades, sempre manteve a paixão por leitura e informação. E hoje é capaz de citar Machado de Assis de cor.

Sem preconceitos

E com Abraão, não tem preconceito, porque ele lê de Paulo Coelho a Nietzsche. Ambos são autores de duas de suas obras favoritas: A Espiã e Assim Falava Zaratustra. Veja só alguns livros que o leitor-porteiro já devorou em 2025: Crentes, sobre a ascensão da igreja evangélica no Brasil; O Médico e o Monstro; Helena, de Machado de Assis, e Odisseia, de Homero.

Mesmo com um salário modesto, Abraão não usa a velha desculpa de que não tem dinheiro para ler, ao contrário do que fazem outros que têm renda muito maior que a dele. O livro Odisseia, por exemplo, o porteiro pegou num espaço destinado a doações que fica na Praia do Forte e onde sempre vai garimpar umas coisas. Muitos títulos, ele já pegou emprestado. “Sou cara de pau: às vezes, chego na casa de alguém, vejo um livro ali no canto e pergunto: me empresta?”, diz, rindo. Claro que raramente recusam o empréstimo, até porque ele costuma devolver.

Tanto que sua biblioteca, em casa, não é muito grande: são cerca de cem livros, muito pouco quando se compara ao que ele afirma ter lido, que é uma média de 50 exemplares por ano, tudo devidamente catalogado em seu celular. Se o livro não é emprestado, Abraão lê e a adiante, especialmente para dois ou três amigos, com quem ele mantém uma espécie de círculo de leitura.

Falta de tempo, outra desculpa comum que usamos para ler pouco (ou para não ler), também não cola no caso de Abraão: disciplinado, tem uma meta de 30 a 40 páginas por dia. Isso é o suficiente, em média, para ler um livro por semana. É verdade que ele trabalha no esquema “dia sim, dia não”, o que lhe ajuda a ter mais tempo para ler. E também aproveita, de vez em quando, o baixo movimento na portaria para dar uma folheada.

Nas folgas, Abraão poderia ir atrás de um “bico”, para incrementar o orçamento, como fazem alguns colegas. Mas o bibliófilo não se rende às tentações capitalistas: está muito contente com a vida simples que leva, lição que aprendeu também nos livros, como em Sêneca - O Grande Mestre do Estoicismo Romano, um dos que leu neste ano.

“Eu tenho vida simples, como no estoicismo. Eu e minha esposa vivemos com minha renda e às vezes, ela faz um extra, mas não temos Bolsa Família. Nas folgas, vou a um terreno que tenho, onde planto aipim, cupuaçu, coco”, diz Abraão. Além da casa onde mora com a esposa Daisy - imóvel simples em Barra do Pojuca, mas muito bem cuidado -, ele tem esse terreno e uma casa embaixo de onde ele mora, que cede a um amigo.

Isso mostra, portanto, que, além de leitor inveterado, o porteiro é muito disciplinado com seus gastos, afinal, com um ordenado tão simples, consegue ter tudo isso. E até agora me pergunto que milagre o porteiro faz para fazer o dinheiro render tanto.

Prioridade

Conhecimento, para ele, sempre foi a prioridade, tanto que, enquanto muitos amigos pagavam o celular novo em prestações infinitas, Abraão parcelava a compra de um dicionário, como fez há 20 anos.

Abraão, no exer
Abraão, no trabalho Crédito: acervo pessoal

O porteiro é casado oficialmente com Daisy Galiza da Cruz desde 2022, mas eles estão juntos há 12 anos. Foi em novembro daquele ano que conheci o casal, por acaso, na Bienal do Livro, no Centro de Convenções de Salvador. Os dois dividiram a mesa na praça de alimentação comigo, que fiquei encantado com a boa prosa deles. E, principalmente, pelo interesse de Abraão por livros, especialmente pela diversidade de gêneros e autores.

O porteiro tinha uns 15 livros na mão, recém adquiridos nas lojas da Bienal. Fiquei tão apaixonado pela história, que ei três anos com a pauta na cabeça, até finalmente dividi-la com o leitor do CORREIO.

Vida

Nascido em Valença, em 1983, Abraão viveu até os 12 anos em Presidente Tancredo Neves, a cerca de 250 quilômetros de Salvador. Depois, foi para o Entroncamento de Jaguaquara, onde ficou até 2003, antes de ir para Barra do Pojuca, em Camaçari. O pai, Vivaldo, só tinha concluído a quarta série e quase não lia. A mãe, Lindalva, tinha a mesma formação e também lia pouco.

“O estímulo para ler veio de minha madrasta, Zene. Ela tinha disciplina e regras, horário certo de almoçar. Trabalhava em casa de família, uns advogados em Salvador. E às vezes, pegava um livro com eles para eu ler”, lembra Abraão.

Ainda quando morava no Entrocamento de Jaguaquara, ele estudou numa escola onde se aproximou da diretora, que confiava nele e lhe entregou a chave da biblioteca. Aquela foi uma experiência decisiva para o jovem que, mais tarde, se tornaria bibliófilo. “Até esta época, em 2003, eu lia muito. Mas quando fui para Pojuca e trabalhei num mercadinho, tive que diminuir a leitura, porque estava num trabalho análogo à escravidão: de 7h às 21h, sem carteira assinada e só uma folga às quartas-feiras, além de um domingo por mês”, diz, indignado.

Não tinha tempo nem cabeça para ler livros, mas lia a revista Piaui. Foi daí que ou a ouvir o podcast Foro de Teresina, um derivado da revista. Mas, mesmo quando não lia, não deixava de se informar, assistindo principalmente à programação da TV Cultura. Abraão lista em só uma tacada os seus programas favoritos da emissora paulista, a que ele se refere como um “celeiro de informação”: “Vejo Café Filosófico, Linhas Cruzadas - apresentado por Luiz Felipe Pondé -, Jornal da Cultura, Matéria de Capa, Opinião, Roda Viva”.

Em 2011, Abraão começou a fazer biologia à distância, mas desistiu. Percebeu que é mais chegado às ciências humanas e deveria fazer relações-públicas ou história. Em 2013, prestou vestibular para história e, por pouco, não entrou na Uneb. Mas, após perder esse vestibular, não tentou mais. “Um curso presencial é complicado porque, a cada dois dias, trabalho por doze horas e não teria como ir para a faculdade”, argumenta.

Os livros o ajudaram também a tomar uma decisão importante: não ter filhos. Tem duas enteadas - que são filhas de um casamento anterior de Daisy -, além de um neto de três anos. A certeza de que não queria ter herdeiros veio com aquela frase de Memórias Póstumas, citada no início deste texto: “Não tive filhos. Não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”.

“Venho de um lugar pobre, de vida sofrida e aria este mesmo legado. E sei que o Estado sempre falha!”, diz Abraão, antes de citar outro autor que ira, Laurentino Gomes: “Na série sobre escravidão, ele fala em três letras P: pau, pão e pano”. Vale aqui uma explicação: aí, Laurentino faz referência ao jesuíta André João Antonil. O pau é para bater no escravo; o pão, para não deixá-lo morrer de fome e o pano, para esconder-lhe as vergonhas. Abraão atualiza os três Ps: “Hoje, é preto, pobre e periférico. Então, pensei: que educação vou dar a esse menino?. Que formação vai ter essa criança com este mundo e um salário curto?”.

Por enquanto, Abraão não planeja deixar o trabalho de porteiro. “A não ser que surja um bom concurso em Camaçari, que pague uns R$ 4 mil”, ressalva. Para ele, felicidade é ter tempo para cuidar da plantação e, claro, ler. “Moro num lugar bacana, em frente pro mar, com oxigênio puro. Tenho uma roça e vou fazer um quarto de frente pro Rio Pojuca, com vista para a Mata Atlântica. Me sinto bem, sem estresse, com a natureza. Aprendi com os filósofos a ser minha própria companhia. Isso é uma terapia”.

Veja no canal do Correio, no youtube, um vídeo especial com abraão: @Correio24hBahia